O Estado e o mercado vendem miséria para colher as falsas soluções que destroem a Amazônia. Solução real, só com floresta em pé, mas falta vontade política

Produção artesanal de farinha de mandioca no Rio Manicoré (AM) abastece as comunidades e gera renda para as famílias.

A farinha de mandioca, de grãos grandes e redondos, douradinha e crocante, está presente em dez de cada dez casas ribeirinhas na Amazônia, e não é diferente no rio Manicoré, no sul do Amazonas, onde a demanda é atendida pela produção das próprias comunidades, que ainda vendem o excedente. Mas esta não é, nem de longe, a única fonte de alimentação e renda na região. A natureza amazônica é muito mais rica e variada que os corredores do supermercado. 

“Aqui eu tenho fartura e não fico gastando dinheiro todo dia. Qual a necessidade de sair para comprar o pão? Se aqui eu vou ali e tiro macaxeira, a gente faz bolo, cozinha macaxeira, faz coxinha ou frita ela mesmo e toma com café, com chá, toma com chocolate, tudo daqui”, gaba-se Sebastiana Parente Batista, agricultora e pescadora, moradora da comunidade Terra Preta, de Manicoré (AM), enquanto nos mostra como é feito seu chocolate 100% cacau. 

Sebastiana Parente Batista, agricultora e pescadora, moradora da comunidade Terra Preta, Manicoré (AM).

Seu terreno fica no alto de um barranco à beira do rio, que leva para um trecho de terra firme com terra preta – como indica o nome da comunidade -, também conhecida como Terra Preta de Índio, que são solos extremamente férteis, onde resíduos orgânicos derivados da ação das populações que primeiro colonizaram a Amazônia acumularam-se ao longo do tempo. 

A pesca, as roças e a coleta de frutos, especialmente de açaí, sempre fizeram parte da cultura alimentar e econômica de Sebastiana, mas foi depois de participar de uma palestra que a agricultora extrativista viu o potencial do sistema agroflorestal. 

“Entre os pés do açaí tem um espaço, e a gente coloca o cacau ali. O cacau não é muito de sol, então ele fica na sombra do açaí. Já na banana, a gente planta a abobrinha no meio. Daí, enquanto ela está brotando, a gente planta o jerimum, que já espalha”, conta. Com o novo sistema, a produção ficou maior e mais variada.

Parte do que é produzido ali é para o consumo familiar – e para compartilhar ou trocar com vizinhos e parentes. Outra parte é vendida aos regatões, embarcações que são a “lojinha de bairro” da floresta. Esses barcos passam nas comunidades, vendendo e comprando produtos, com preços quase sempre pouco vantajosos tanto para quem compra, como para quem vende sua produção. 

Mas, nesse paraíso de fartura, isso nem chega a ser um problema, embora fosse muito mais interessante para as comunidades se estas pudessem acessar algum programa que garantisse a compra da produção, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), e colocar seu açaí, castanha, farinha, frutos e outras delícias diretamente na merenda de crianças de todo o estado. Já pensou, comida de verdade, proteção ambiental e remuneração justa para agricultores e agricultoras, tudo em uma tacada só?

Ausência do Estado como projeto político

Infelizmente, os produtores agroextrativistas de Manicoré não recebem a mesma atenção nem as mesmas benesses que outros setores da economia, como a pecuária ou a plantação de soja, que podem acessar vultosas linhas de crédito e isenções fiscais para compra de insumos, e ainda recebem na porta de suas fazendas estradas e eletricidade. Na verdade, para as comunidades extrativistas falta o básico: saúde, educação e muitas vezes até energia elétrica, fundamentais para trazer qualidade de vida e desenvolvimento de verdade. 

“Recentemente a gente viu uma fala do governador muito, muito pobre. De dizer que ‘enquanto tiver alguém passando fome, árvores não devem estar de pé’. É um discurso tão absurdo. Como é que as pessoas se calam quando alguém diz isso? Por que as pessoas aceitam isso se elas sabem que não é verdade? E por que isso dói tanto na gente e as pessoas não estão entendendo?”, desabafa Jolêmia Chagas, cientista agrária e doutora em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade que tem laços familiares com Manicoré. 

Para ela, a forma com que a Amazônia vem sendo explorada parte de uma ótica colonialista, onde os padrões do que é “riqueza” e “desenvolvimento” são trazidos de fora, sem nunca considerar o que essas coisas realmente significam para a população amazônica. 

Jolêmia acompanha de perto a luta das comunidades do rio Manicoré e da Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim) pela criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), que já dura 16 anos. Neste ano, depois de seguidas manifestações das comunidades e com apoio das organizações da sociedade civil, os moradores receberam uma Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) na modalidade coletiva, que assegura o direito territorial e o uso sustentável pelos moradores, proibindo a venda ou requerimento da área, mas que ainda não protege o rio em si, entre outras limitações. 

Agora, como pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (FGVCES), Jolêmia vem prestando apoio à Caarim na construção do Plano de Gestão da CDRU, uma etapa fundamental para que o direito ao território continue assegurado.

Desde 2006, famílias associadas à Central das Associações Agroextrativistas do rio Manicoré (CAARIM) buscam criar a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Manicoré, mas conseguiram este ano uma CDRU. Durante a expedição Amazônia que Precisamos, foram realizadas ações de sinalização do território.

Desenvolvimento para quem?

Para Sebastiana, desenvolvimento significa ter uma escola na comunidade, para que seus filhos não tenham que viajar para tão longe para estudar e possam se fixar na terra, levando adiante o conhecimento da família. Esse é seu maior sonho no momento. Mas também ter energia elétrica para funcionar um freezer e poder congelar o peixe, sem ter que salgá-lo, e ter tempo para sentar na beira do rio com os vizinhos e ver o dia cair entre as árvores, comendo beijus e tomando café local.  

Não há pobreza onde existem árvores. Pobreza existe no lugar onde as árvores são retiradas, e os povos da floresta arrancados de sua vida e sua paz. Em toda a Amazônia, não faltam exemplos de municípios e localidades inflados por garimpos, desocupações e grilagem, ou por causa da chegada de grandes obras de infraestrutura, como estradas e hidrelétricas, que promovem o êxodo forçado de populações tradicionais e povos indígenas, atirando-os à miséria real. O sonho de lucro de algum bacana que descansa tranquilo em sua mansão em uma grande capital se torna o pesadelo diário na Amazônia.

Lugares como Jacareacanga (atualmente o segundo município mais violento do Brasil, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, e é dominado pelo garimpo) ou Altamira (que teve que absorver todo o fluxo migratório causado pela construção da usina hidrelétrica de Belo Monte) viram sinônimos de populações forçadas a esquecer uma vida de fartura e comida certa na beira do rio, para viverem um cotidiano de pobreza e privação nas periferias das cidades. Quando o Estado abre mão de seu papel de garantir direitos básicos e qualidade de vida à população, tragédias como essas acontecem. 

Entra ano, sai ano, a economia da destruição que dizima florestas se fortalece, enquanto o desenvolvimento real, a distribuição de renda e a qualidade de vida tanto almejadas pela população amazônida nunca chegam. Situação ainda mais agravada nos últimos anos, graças às ações e omissões do governo federal e sucessivas tentativas de flexibilizar a legislação socioambiental.

O dinheiro que fica na Amazônia é pouco, pois o lucro real sustenta a vida de luxo de negociadores nas grandes metrópoles e além mar, como na época da colonização portuguesa, que levou embora as riquezas que encontraram no Brasil, deixando para trás uma terra arrasada e falida. 

Para quem fica, sobra a sujeição forçada ao crime organizado, a vulnerabilidade, o abandono. Muitas vezes, a morte, enquanto o Estado finge que não vê. 

Sem ignorar, é claro, o papel do mercado neste cenário, já que fundos de investimento e empresas seguem financiando ou comprando produtos com rastro de destruição. É preciso que todos – governos, empresas e a sociedade – se comprometam com uma transição ecológica para um modelo alinhado às necessidades dos novos tempos. 

Tá na hora de o Brasil virar o disco, de entendermos que o desenvolvimento tem que vir de dentro da Amazônia, com respeito aos modos de vida das comunidades locais e dos povos indígenas, do conhecimento tradicional, com valorização da biodiversidade e de todo o potencial da floresta em pé, com educação e ciência! 

E é isso que estamos mostrando na expedição Amazônia que Precisamos. Neste ano decisivo para o Brasil, precisamos recalcular a rota e, só para variar, investir em políticas públicas que protejam a Amazônia e seus povos, e que promovam um desenvolvimento real, que beneficie a sociedade brasileira e o planeta como um todo. 

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